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terça-feira, 29 de junho de 2010

A LOUCA DA CASA


A LOUCA DA CASA
De ROSA MONTERO *

O livro que eu gostava de ter escrito

* Rosa Montero, nascida em Madrid em 1951, jornalista há quase 40 anos, é também autora de romances e ensaios traduzidos em várias línguas. O seu nome é imediatamente associado ao diário espanhol El País, para o qual trabalha desde a sua fundação, em 1976.
Figura central da literatura espanhola contemporânea, narradora de ficção – como gosta de se considerar – pois que o que mais a apaixona é a ficção, tem vários livros editados em Portugal, dos quais destacamos, para além de A Louca da Casa (Edições Asa, 2004); Histórias de Mulheres (Edições Asa, 1995); Paixões: Amores e Desamores que Mudaram a História (Editorial Presença, 2000) e História do Rei Transparente (Círculo de Leitores, 2005).
A Louca da Casa (2003) recebeu o Prémio Grinzane Cavour de literatura estrangeira e o Prémio Qué Leer para o melhor livro espanhol, distinção igualmente atribuída, em 2006, a História do Rei Transparente.

«A imaginação é a louca da casa.»
Santa Teresa de Jesus

«A imaginação é a forma como completamos a realidade e assim conseguimos sobreviver, porque se não a existência seria um caos insuportável. Digamos que a vida imaginária é tão autêntica como a real, onde existe também uma grande dose de ficção.»
Rosa Montero (em entrevista à Revista Visão, 2004)

Não sendo esta a circunstância para debater se há uma escrita feminina ou, no dizer de alguns, uma literatura “de mulheres”, apresento-vos, em vez disso, um livro delicioso e intimista escrito por uma mulher, com um título no feminino, em que a ambiguidade de olhares narrativos é, mais do que uma marca de género, um valor literário.
* * * * * * * * * * *
Feio pecado este da inveja! Que, peço, me seja perdoado pela confissão que vai no título e repito: “Queria muito ter sido eu a escrever este livro!”, penso, cada vez que o releio. E faço-o muitas vezes, pois volto frequentemente a páginas avulsas deste inclassificável e desarmante A Louca da Casa em que, qual ovo de Colombo ou intuição inspirada, Rosa Montero nos dá o fascínio e a magia da escrita, fingindo que escreve sobre si e os outros… escritores, enquanto conversa connosco, leitores.
Apreciadora incondicional de livros de difícil catalogação, gosto de tudo neste: da indefinição do texto em termos de género - um híbrido que, saltitando entre o romance, o ensaio, a (auto) biografia, joga com o real e o fictício - ao título “roubado” a uma frase de Santa Teresa de Ávila; do estilo leve e descomplexado da autora à análise, por vezes mordaz, dessa coisa mágica, misteriosa, da imaginação literária e da sua ténue e nevoenta fronteira com os múltiplos desdobramentos possíveis da realidade. Mas há mais: entusiasta de biografias, em A Louca da Casa disponho, na fluidez da escrita jornalística de Rosa Montero documentada no seu conhecimento lúcido da classe por dentro, de centenas de referências a circunstâncias e cenas das vidas conturbadas de numerosíssimos autores de obras, para mim, mais ou menos conhecidas.
Em suma, A Louca da Casa não é um ensaio sobre literatura, mas antes uma espécie de mini tratado divertido e inteligente sobre a dimensão salvadora do trabalho de criação literária. Dito de outro modo: sob a aparência de uma brincadeira muito séria e original, surge-nos a absoluta apologia do poder da imaginação; um olhar próprio sobre o mundo ou, nas palavras da autora, «… um livro que joga com a imaginação não só do artista ou do escritor, mas de todos os seres humanos. (…) o ser humano é, sobretudo, um contador de histórias. Mesmo as pessoas que dizem que não são imaginativas não se apercebem até que ponto dependem da imaginação para sobreviver».
E este jogo é levado tão longe pela autora que deixamos absolutamente de saber se a existência de alguns elementos autobiográficos semeados no texto são ou não verdadeiros. Rosa Montero diverte-se/nos contando histórias da sua vida, que, não raro, se contrariam, o que permite supor que, por acção da “louca da casa", tais factos só terão existido, afinal, na/pela imaginação da Rosa Montero, ficcionista.
Dois exemplos: as histórias de infância e juventude envolvendo a irmã, «…Martina, que é e não é», fantasiadas ou não, deixam de traduzir e completar realidades só porque Rosa Montero não tem, de facto, irmãs? E o que interessa saber se a narradora teve ou não um caso com um actor de Hollywood, se ela nos conta, em três divertidas versões, uma eventual aventura amorosa com tal “estrela”?
. Importa bem mais a forma como metaforicamente a autora nos desvela o processo criativo, com momentos muitas vezes iluminados e inspiradores. E nos mostra como, através da leitura de romances, cada um de nós poder viver muitas outras vidas e, desta maneira, aprender a viver melhor a sua.
Quanto a escrevê-los defende, depois de nos contar, em mais uma das suas histórias-metáfora, como a principal personagem, uma velhinha freira de clausura, pôde finalmente, da varanda defronte, ver o seu convento do lado de fora: «Escrever romances implica atrevermo-nos a contemplar este trajecto monumental que nos arranca de nós próprios e nos permite ver-nos no convento, no mundo, no todo. E depois de fazer esse esforço supremo de compreensão, depois de roçar por um instante a visão que completa e que fulmina, regressamos a coxear à nossa cela, à prisão da nossa estreita individualidade, e tentamos resignar-nos a morrer».
Definitivamente, recomendo a quem gosta de ler, se interessa pelo mágico ofício de escrever, ou simplesmente deseja conhecer os mecanismos da criação literária na sua relação com esse «bichinho álacre e sedento» da imaginação, que bole na nossa cabeça como na de Gedeão e de outros monumentais autores.
Um convite ao puro ao prazer de ler ou um (novo) elogio da loucura – a “mentira” pessoana, lembram-se? – porque, «na pequena noite da vida humana, a louca da casa acende velas».

Professora - Dulce Martinho

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