«Como o outro, este jogo é infinito.»
Cito como inter-título um enigmático verso de Jorge Luís Borges, o último do seu poema “Xadrez”, de que gosto especialmente (mesmo sem saber de que «outro» jogo nos fala o poeta), para dar conta das minhas escolhas na quase infinitude do trabalho literário borgiano. Naturalmente, neste universo labiríntico de erudição imaginária, de ficção lúdica, sobressaem dois títulos significativos das intenções literárias do seu autor na década em que a cegueira progressiva lhe dava a vida em sombras: com Ficções/Ficciones (1944) e O Aleph/El Aleph (1949) Borges consolida-se agora como “grande narrador” em detrimento da voz lírica das suas obras de juventude.
O primeiro inclui duas colectâneas de contos “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” (1941) e “Artifícios” (1944). Não é fácil medir o grau exacto de estranheza produzida no leitor por estas “narrativas”, quase carentes de intriga e personagens. São situações envolventes, às vezes, perturbantes, saídas da pena de um filósofo-poeta de sensibilidade e inteligência superiores, cuja voz narrativa ela própria se bifurca para nos deixar em vaivém entre o ensaio e o conto. Imaginação e espírito crítico, fantasia e ciência, ficção e realidade parecem ser nestes contos uma só e única coisa.: fragmentos densos de uma reflexão aguda sobre o mundo e as obras do espírito. Ou não fosse em Ficções que “lemos” na mítica biblioteca de Babel, uma biblioteca infinita alinhando todos os livros “possíveis”, em resposta ao humano desejo de encontrar “o livro dos livros”, aquele que nas suas páginas teria a resposta a todos os mistérios da condição humana.
Em Ficções, destaque ainda para «O Sul», último conto da colectânea e o favorito de J. L. Borges, cuja inspiração autobiográfica o autor assume. Aí, na personagem de um leitor fervoroso, se retomam, no espelho da literatura, as vicissitudes que lhe marcaram o destino e a obra: um acidente estúpido, febre e alucinações, uma clínica, uma operação à cabeça e, claro, a nostalgia – tão ou mais íntima do que geográfica - de um bairro do sul de Buenos Aires.
Poucos anos volvidos, esta via apaixonada do conto fantástico será prosseguida e consolidada por Borges com O Aleph, nova recolha de novelas que lhe dará celebridade internacional e a que Jorge Luís Borges se referiu como «este livro […] susceptível de repetições, de versões e de perversões quase inesgotáveis». Histórias insólitas de personagens estranhas, semi-monstruosas, em estado de solidão, contadas num estilo próprio, quase a tocar o romance policial, nutrem-se, em última análise, de metafísica e de teologia. Os temas heteróclitos de sempre na literatura borgiana: o tempo, o eu, o outro, o sonho, o infinito, os labirintos que se erguem dentro de cada homem e os caminhos que se bifurcam. Recordo “O Imortal”, o primeiro conto de O Aleph que pode ler-se como uma biografia do pensamento e da existência humana tão dolorosa como exaltante. Já do último texto, o que dá título à obra, onde se sente o amor como motivo, disse Borges ser este «uma vaga paródia de Dante».
Excelente complemento da colectânea precedente, este novo volume de contos, literariamente mais maduro, segundo os especialistas, surge-me, de leitura ainda menos fácil, até porque, num exercício de subtil arquitectura narrativa, os contos parecem ser ecos sucessivos uns dos outros, como se Borges os tivesse (re)escrito em busca do conto perfeito, ou melhor, de um poema perfeito, já que, afinal, era como poeta que queria ser recordado.
Por último, O Fazedor/El Hacedor (1960). Livro caleidoscópico - miscelânea de narrativas breves, parábolas, poemas líricos, contos, ensaios, e meditações sugeridas - cujas páginas lembram notas apressadas, propícias ao ditado e/ou à memorização. Como sempre, textos curtos, concisos, de grande densidade e força inventiva, admiravelmente bem escritos e, assim, capazes de darem corpo aos sonhos e/ou de se ramificarem na imaginação de quem os lê. E não sendo o amor, decerto, um traço nuclear da prosa de Borges, aqui o encontramos em verso ou em prosa poética, nem que seja na arte alusiva da passageira recordação de uma paixão antiga.
E de novo a autobiografia. Na verdade, num traçado aparentemente aleatório, facilmente pressentimos os passos e a imagem do poeta no sentido grego da palavra -«aquele que faz» e mesmo aos costumeiros contos fantásticos não faltam laivos de realidade como se cada “peça” que compõe esta obra-plural tivesse nascido de uma verdadeira necessidade interior de o criador/”fazedor” se descobrir uno no seu labirinto. Ora, desta centralidade de O Fazedor no seu universo literário e vivencial nos dá conta o próprio Jorge Luís Borges, defendendo no epílogo da obra: «de quantos livros publiquei, creio que nenhum é tão pessoal como esta desordenada, indisciplinada colectânea, precisamente porque fértil em imagens e interpolações».
De facto, há vários textos e poemas em que o homem Borges se presentifica, como quando, com extraordinária tonalidade descritiva, nos fala da cegueira da personagem Heitor, no conto «O Fazedor», e, no «Poema dos Dons», se lhe refere poeticamente escrevendo: Ninguém rebaixe à lágrima ou à censura/ Esta declaração da maestria/De Deus, que com magnífica ironia / Me deu os livros e a noite escura.
Último destaque para o Borges admirador da literatura e história portuguesas. Em O Fazedor há um poema dedicado a Camões e à sua «Eneida Lusitana» e outro, «Os Borges», onde o escritor confessa, por interposta pessoa da voz poética que nele fala: «Bem pouco ou nada sei de meus maiores/ Portugueses, os Borges: vaga gente/Que prossegue em minha carne obscuramente, seus hábitos rigores e temores.»
Não sendo um dos livros mais conhecidos de Borges, O Fazedor é a minha sugestão de leitura para os - como eu - iniciantes no estilo tão surpreendente e irónico como subtil e erudito, mas nunca acidental, de Jorge Luís Borges.
Jorge Luís Borges: literatura; prosa e poesia; um “homem de Letras”; uma escrita única, com “carácter”, inusual - pela simplicidade extrema, pelo insólito de uma quase “secura”estilística em paradoxal osmose com uma notabilíssima erudição - que, mesmo assim ou talvez por isso mesmo, opõe ao leitor dificuldades singulares.
Por mim, gosto definitivamente muito de versos como estes do poema “Ariosto e os Árabes”: «Ninguém pode escrever um livro. Para/Que um livro seja verdadeiramente/Requerem-se a aurora e o poente/Séculos, armas e o mar que une e separa.» São lindos e bem o exemplo de que, pela sua serenidade melancólica, pelo tom grave, quase “ingénuo” e sem ostentação, mas pleno de “filosofia”, a poesia de J. L. Borges, no seu conjunto, será um extraordinário e alucinante inventário de nós mesmos.
Quanto às suas “ficções”, pelo seu ineditismo, intertextualidade, carácter plurissignificante e actualidade inquestionáveis, merecem que haja sempre quem as leia e nelas procure as “chaves” da sua escrita desafiante, porque, afinal, como escreveu João Palma-Ferreira, um dos seus tradutores em Portugal, «Borges (…) leva tempo a amadurecer e ainda muito mais a admirar»!
Profesora Dulce Martinho
Cito como inter-título um enigmático verso de Jorge Luís Borges, o último do seu poema “Xadrez”, de que gosto especialmente (mesmo sem saber de que «outro» jogo nos fala o poeta), para dar conta das minhas escolhas na quase infinitude do trabalho literário borgiano. Naturalmente, neste universo labiríntico de erudição imaginária, de ficção lúdica, sobressaem dois títulos significativos das intenções literárias do seu autor na década em que a cegueira progressiva lhe dava a vida em sombras: com Ficções/Ficciones (1944) e O Aleph/El Aleph (1949) Borges consolida-se agora como “grande narrador” em detrimento da voz lírica das suas obras de juventude.
O primeiro inclui duas colectâneas de contos “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” (1941) e “Artifícios” (1944). Não é fácil medir o grau exacto de estranheza produzida no leitor por estas “narrativas”, quase carentes de intriga e personagens. São situações envolventes, às vezes, perturbantes, saídas da pena de um filósofo-poeta de sensibilidade e inteligência superiores, cuja voz narrativa ela própria se bifurca para nos deixar em vaivém entre o ensaio e o conto. Imaginação e espírito crítico, fantasia e ciência, ficção e realidade parecem ser nestes contos uma só e única coisa.: fragmentos densos de uma reflexão aguda sobre o mundo e as obras do espírito. Ou não fosse em Ficções que “lemos” na mítica biblioteca de Babel, uma biblioteca infinita alinhando todos os livros “possíveis”, em resposta ao humano desejo de encontrar “o livro dos livros”, aquele que nas suas páginas teria a resposta a todos os mistérios da condição humana.
Em Ficções, destaque ainda para «O Sul», último conto da colectânea e o favorito de J. L. Borges, cuja inspiração autobiográfica o autor assume. Aí, na personagem de um leitor fervoroso, se retomam, no espelho da literatura, as vicissitudes que lhe marcaram o destino e a obra: um acidente estúpido, febre e alucinações, uma clínica, uma operação à cabeça e, claro, a nostalgia – tão ou mais íntima do que geográfica - de um bairro do sul de Buenos Aires.
Poucos anos volvidos, esta via apaixonada do conto fantástico será prosseguida e consolidada por Borges com O Aleph, nova recolha de novelas que lhe dará celebridade internacional e a que Jorge Luís Borges se referiu como «este livro […] susceptível de repetições, de versões e de perversões quase inesgotáveis». Histórias insólitas de personagens estranhas, semi-monstruosas, em estado de solidão, contadas num estilo próprio, quase a tocar o romance policial, nutrem-se, em última análise, de metafísica e de teologia. Os temas heteróclitos de sempre na literatura borgiana: o tempo, o eu, o outro, o sonho, o infinito, os labirintos que se erguem dentro de cada homem e os caminhos que se bifurcam. Recordo “O Imortal”, o primeiro conto de O Aleph que pode ler-se como uma biografia do pensamento e da existência humana tão dolorosa como exaltante. Já do último texto, o que dá título à obra, onde se sente o amor como motivo, disse Borges ser este «uma vaga paródia de Dante».
Excelente complemento da colectânea precedente, este novo volume de contos, literariamente mais maduro, segundo os especialistas, surge-me, de leitura ainda menos fácil, até porque, num exercício de subtil arquitectura narrativa, os contos parecem ser ecos sucessivos uns dos outros, como se Borges os tivesse (re)escrito em busca do conto perfeito, ou melhor, de um poema perfeito, já que, afinal, era como poeta que queria ser recordado.
Por último, O Fazedor/El Hacedor (1960). Livro caleidoscópico - miscelânea de narrativas breves, parábolas, poemas líricos, contos, ensaios, e meditações sugeridas - cujas páginas lembram notas apressadas, propícias ao ditado e/ou à memorização. Como sempre, textos curtos, concisos, de grande densidade e força inventiva, admiravelmente bem escritos e, assim, capazes de darem corpo aos sonhos e/ou de se ramificarem na imaginação de quem os lê. E não sendo o amor, decerto, um traço nuclear da prosa de Borges, aqui o encontramos em verso ou em prosa poética, nem que seja na arte alusiva da passageira recordação de uma paixão antiga.
E de novo a autobiografia. Na verdade, num traçado aparentemente aleatório, facilmente pressentimos os passos e a imagem do poeta no sentido grego da palavra -«aquele que faz» e mesmo aos costumeiros contos fantásticos não faltam laivos de realidade como se cada “peça” que compõe esta obra-plural tivesse nascido de uma verdadeira necessidade interior de o criador/”fazedor” se descobrir uno no seu labirinto. Ora, desta centralidade de O Fazedor no seu universo literário e vivencial nos dá conta o próprio Jorge Luís Borges, defendendo no epílogo da obra: «de quantos livros publiquei, creio que nenhum é tão pessoal como esta desordenada, indisciplinada colectânea, precisamente porque fértil em imagens e interpolações».
De facto, há vários textos e poemas em que o homem Borges se presentifica, como quando, com extraordinária tonalidade descritiva, nos fala da cegueira da personagem Heitor, no conto «O Fazedor», e, no «Poema dos Dons», se lhe refere poeticamente escrevendo: Ninguém rebaixe à lágrima ou à censura/ Esta declaração da maestria/De Deus, que com magnífica ironia / Me deu os livros e a noite escura.
Último destaque para o Borges admirador da literatura e história portuguesas. Em O Fazedor há um poema dedicado a Camões e à sua «Eneida Lusitana» e outro, «Os Borges», onde o escritor confessa, por interposta pessoa da voz poética que nele fala: «Bem pouco ou nada sei de meus maiores/ Portugueses, os Borges: vaga gente/Que prossegue em minha carne obscuramente, seus hábitos rigores e temores.»
Não sendo um dos livros mais conhecidos de Borges, O Fazedor é a minha sugestão de leitura para os - como eu - iniciantes no estilo tão surpreendente e irónico como subtil e erudito, mas nunca acidental, de Jorge Luís Borges.
Jorge Luís Borges: literatura; prosa e poesia; um “homem de Letras”; uma escrita única, com “carácter”, inusual - pela simplicidade extrema, pelo insólito de uma quase “secura”estilística em paradoxal osmose com uma notabilíssima erudição - que, mesmo assim ou talvez por isso mesmo, opõe ao leitor dificuldades singulares.
Por mim, gosto definitivamente muito de versos como estes do poema “Ariosto e os Árabes”: «Ninguém pode escrever um livro. Para/Que um livro seja verdadeiramente/Requerem-se a aurora e o poente/Séculos, armas e o mar que une e separa.» São lindos e bem o exemplo de que, pela sua serenidade melancólica, pelo tom grave, quase “ingénuo” e sem ostentação, mas pleno de “filosofia”, a poesia de J. L. Borges, no seu conjunto, será um extraordinário e alucinante inventário de nós mesmos.
Quanto às suas “ficções”, pelo seu ineditismo, intertextualidade, carácter plurissignificante e actualidade inquestionáveis, merecem que haja sempre quem as leia e nelas procure as “chaves” da sua escrita desafiante, porque, afinal, como escreveu João Palma-Ferreira, um dos seus tradutores em Portugal, «Borges (…) leva tempo a amadurecer e ainda muito mais a admirar»!
Profesora Dulce Martinho
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