Pesquisar neste blogue

quarta-feira, 28 de abril de 2010

VIAGEM INICIÁTICA


No princípio era o mito. E assim como o grande Deus fazia poesia na alma dos hindus, gregos e germanos, procurando expressar-se, assim de novo ele fazia poesia, dia após dia, na alma de cada criança. Então, eu ainda não sabia como se chamavam o lago, os montes e ribeiros da minha terra; mas olhava a vastidão lisa, verde-azul do lago ao Sol, recamada de pequenas luzes, as montanhas abruptas em redor, como uma corda espessa, nas gargantas mais elevadas, as falhas reluzentes de neve e as pequenas, minúsculas quedas de água, e no sopé as luminosas veigas salpicadas de árvores de fruto, cabanas e vacas cinzentas dos Alpes. E estando a minha pobre pequena alma tão vazia, silenciosa e anelante, os espíritos do lago e das montanhas escreveram nela os seus belos e ousados feitos. As hirsutas escarpas e rochas falavam, insistentes e plenas de respeito, dos tempos de que descendem e trazem as cicatrizes. Falavam do tempo em que a Terra quebrava e vergava e, do seu seio atormentado, gemendo nas dores do parto, fazia irromper picos e cristas. Montanhas de rocha erguiam-se bramindo e retumbando e, aguçando-se sem medida, partiam; montes gémeos lutavam desesperadamente por espaço, até que um deles vencia, e se elevava, e lançava o seu irmão para o lado, despedaçando-o. Desses tempos, nos desfiladeiros, jaziam ainda aqui e além, cumes partidos, rochas expelidas e fendidas, e de cada vez que a neve derretia, a queda das águas lançava para baixo blocos tão grandes como casas, estilhaçando-os como vidro ou, com golpes colossais, cravava-os profundamente em veigas suaves.

Hermann Hesse, Peter Camenzind, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992

1 comentário:

amigas da prof disse...

Belo texto. Adorei.Descrições fantásticas.